Desde o seu anúncio inicial na E3 de 2019, Spiritfarer já despertou uma certa curiosidade pela temática que compõe seus aspectos de narrativa. Desenvolvido e publicado pela Thunder Lotus Games, conhecida pelo seu trabalho em Jotun, esse título de gerenciamento e exploração escolhe um caminho no mínimo interessante e inusitado para abordar assuntos delicados no cotidiano da maioria das pessoas.
Começando um emprego do outro mundo
Ambientado em um mundo de espíritos, Spiritfarer nos coloca no controle de Stella, uma jovem que acorda em um pequeno barquinho com seu gato de estimação Daffodil. Ao lado deles está ninguém mais, ninguém menos que Caronte, Barqueiro dos Espíritos, que anuncia a Stella que está se aposentando e deixando este mundo para sempre. No lugar dele, ficará a nossa protagonista, que agora tem o importante dever de receber e auxiliar no seu novo navio as almas que ainda não estão prontas para partir.
A princípio, não parece que estamos lidando com um jogo de gerenciamento, sobretudo pela impressão que ele nos passa logo de cara ao colocar em nossas mãos a responsabilidade de lidar com as pendências de indivíduos que não querem deixar para trás o que tinham em vida. Porém, os tutoriais iniciais rapidamente tratam de situar o jogador sobre como as coisas funcionam.
Por intermédio de Gwen, primeira passageira que conhecemos e que se revela uma grande amiga de Stella, vamos nos familiarizando com as atividades exercidas no navio e fora dele. O jogo alterna entre cuidar da embarcação e seus passageiros, e a exploração de ilhas nas águas pelas quais navegamos. Tudo gira em torno de atender às solicitações e desejos dos nossos hóspedes, que vão de um simples pedido por comida a visitar uma localidade que os ajude a dar um passo adiante em direção ao desapego dos seus laços terrenos.
Esse hotel para almas em conflito não vai se gerenciar sozinho
Como Barqueira dos Espíritos, Stella precisa construir instalações que lhe forneçam os recursos necessários para manter seus inquilinos confortáveis, bem alimentados e felizes, com direito a alojamentos individuais personalizados, conversas emocionantes e até ocasionais abraços.
O material necessário para nos ajudar com a manutenção do nosso meio de transporte e trabalho é encontrado nas mais diversas fontes internas e externas ao navio: além das nossas construções, existem ilhas, lojas, caixas à deriva, vendedores itinerantes e até tempestades de raios e nuvens cheias de criaturas carregadas de Centelhas, a moeda principal do jogo.
Em meio à exploração desses lugares, conhecemos pessoas e ouvimos histórias inclusive daqueles que, ao conhecer a jovem encantadora que substituiu Caronte, se tornarão novos hóspedes rumo ao Portal Eterno, destino final dos que estão prontos para aceitar a morte. Em troca, eles nos fornecem Óbolos, moedas usadas por Stella para adquirir habilidades necessárias aos pequenos desafios de plataforma que encontramos. Esses personagens especiais que se juntam a nós em busca de um desfecho assumem formas animais distintas, que refletem suas personalidades humanas.
Trabalho e exploração para mais de metro
Ambos os pilares da jogabilidade de Spiritfarer são, em grande parte, bem balanceados, evitando apresentar muitos trechos que acabam sendo meros obstáculos incômodos no caminho dos momentos realmente empolgantes.
As microatividades existentes na mecânica de geração de recursos em cada construção e a atenção requisitada pelos espíritos que estão sob os cuidados de Stella são uma combinação que nos mantém constantemente ocupados quando estamos a bordo. Sempre haverá receitas para aprender e cozinhar; vegetais e grãos para plantar, regar e colher; tecidos para produzir; rochas para quebrar; metais para fundir e muito mais. Isso sem falar que não podemos esquecer de alimentar nossos hóspedes de acordo com o que eles gostam e não gostam de comer, decorar seus lares e levá-los aonde eles pedem, tudo para mantê-los satisfeitos e cumprir com o que lhes falta resolver até a hora derradeira.
Essas ações rápidas envolvem um pouco de precisão e paciência para serem executadas de modo a otimizar a extração de matéria-prima, mas nada muito difícil para não tirar o foco da administração geral do navio, principalmente à medida que vamos avançando no jogo e o número de tarefas que requerem nossa dedicação vai aumentando.
Já a exploração, conforme mencionado anteriormente, se desenrola por meio de conhecer tudo que vai além da nossa base de operações, como algumas criaturas marinhas que também fornecem recursos, um mercador que nunca está em um ponto fixo e, é claro, as muitas ilhas e seus peculiares habitantes, que nos brindam com os detalhes dos seus cotidianos.
Aqui entram alguns elementos não muito característicos do gênero de gerenciamento, como platforming e um backtracking que envolve adquirir habilidades que nos permitem alcançar áreas inacessíveis de lugares que já visitamos e aos quais agora precisamos retornar. Para quem gosta de coletar absolutamente tudo que um jogo tem a oferecer, visitar cada pedacinho do gigantesco mapa de Spiritfarer garante uma quantidade de tempo digna de produções AAA; de acordo com a página do título na Steam, leva-se aproximadamente 50 horas para explorar seu conteúdo completo.
A gente já chegou?
Quando eu digo que o misto de exploração e gerenciamento que compõe a gameplay é balanceado “em grande parte”, me refiro aos seus dois maiores problemas, que se manifestam especialmente mais para o término da aventura: repetitividade e excesso.
A evolução natural da progressão na história deixa Stella com uma quantidade exagerada de tarefas múltiplas para dar conta, podendo sobrecarregar o jogador. Spiritfarer não é um jogo punitivo, então esse fator não é prejudicial por si só, mas levando em conta que temos que realizar as mesmas ações rotineiramente por tanto tempo, é meio desanimador e até desnecessário em alguns momentos se dar ao trabalho de percorrer toda a extensão do barco para se certificar que fizemos tudo que podíamos fazer.
A simplicidade dos comandos que essas ações pedem contribui para esse desânimo. Aprender novas mecânicas e suas particularidades é estimulante e sustenta o entusiasmo do jogador por boa parte da jogatina, mas não é suficiente para levá-lo por toda a sua extensão. Eventualmente chega um ponto em que podemos deixar alguns trabalhos mais de lado e nos concentrar nas almas que precisam dos nossos serviços.
Lições que podemos aprender com a morte
O storytelling é, sem favor algum, onde Spiritfarer brilha. Encontrar novos espíritos e conhecer mais sobre as vidas que eles levavam é de fato o que nos move de um lado para o outro por toda a extensão dos mares desse fantástico mundo espiritual. Confesso que na maior parte do tempo não tive a sensação de estar jogando um jogo que lida com a morte, tamanho é o carisma único de cada personagem que se junta a Stella e Daffodil.
A relação que a protagonista desenvolve com cada passageiro nos faz sentir que todos são parte integrante da família da Barqueira dos Espíritos tanto quanto eram dos seus amigos e parentes. Durante sua estadia conosco, eles vão enxergando o que os levou aonde estão. A jornada que eventualmente terminará no Portal Eterno os faz compreender tudo de bom e ruim que eles tiveram; até os personagens mais desagradáveis reconhecem a soma das partes de um todo que viveram e, na hora de se despedir, nos presenteiam com desabafos dignos de fazer qualquer um se emocionar.
Os aspectos visuais e a trilha sonora reforçam muito essa beleza e a serenidade reconfortante que permeiam cada segundo de gameplay, com lindíssimas artes feitas à mão e músicas que alternam entre tranquilas e animadoras/empolgantes. É um verdadeiro deleite aos olhos e ouvidos presenciar cenas como a transformação de um novo hóspede para sua forma animal, ou a ascensão aos céus que eles fazem ao finalmente partir para o outro lado.
Ao rechear sua aventura com uma mistura de diálogos e interações divertidas e sérias, mostrando como pessoas diferentes deram significado às suas existências, o jogo quer a todo momento nos ensinar a lidar com o peso da morte, ensinando o que podemos aproveitar de bom e o que podemos aprender com os acontecimentos ruins enquanto estamos vivos. A carga emocional é alta, mas o aprendizado que podemos extrair engrandece de forma geral essa sensacional experiência narrativa que é Spiritfarer.
Análise feita com cópia digital cedida pela Thunder Lotus Games