Em um universo onde existam super-heróis, podemos imaginar coisas que tocam o impossível. Super força, habilidade de voo, intangibilidade, invencibilidade… daria para encher páginas com uma lista. E, geralmente, a premissa envolve uma determinada situação na qual o mundo corre risco, o esforço do herói em conter tal ameaça e o final de comercial de margarina, onde todos vivem felizes para sempre.
Essa fórmula precisou ser revisitada com o passar do tempo, de modo que temáticas cada vez mais realistas foram inseridas nos problemas enfrentados pelos encapuzados. Começaram a surgir também finais não tão felizes, bem como algumas mortes, embora morte em HQs seja algo beeem relativo – não é raro personagens morrerem e aparecerem vivos algumas edições depois.
Em se tratando de Batman, nos é oferecido um show a parte. Nosso homem-morcego octogenário nos brinda com histórias que exploram suas inúmeras facetas: detetive, mestre dos disfarces, ninja, mestre da computação, entre muitas outras. Na cidade protegida pelo Cavaleiro das Trevas – Gotham City – os super vilões acabam caindo em duas instituições após serem capturados: a prisão Blackgate e o asilo Arkham. Como fugir delas é mais fácil do que andar pra frente, Batman tem trabalho toda santa noite.
O Bat-sinal – um holofote que se encontra no Departamento de Polícia de Gotham City – é acionado cada vez que a força policial gothamita precisa de ajuda. Gotham Central (2003) surge com o objetivo de nos trazer o ponto de vista dos policiais, e nos mostra que não há satisfação em chamar o morcego.
Não confia na polícia? Liga pro Batman!
Idealizada por Greg Rucka e Ed Brubaker – dois escritores que trazem em seus currículos prêmios Eisner e Harvey – a premissa do arco perpassa os sentimentos dos policiais dentro do Departamento de Polícia. O leitor já é bombardeado de início com uma investigação – uma garota de catorze anos está desaparecida – que coloca dois oficiais cara a cara com o Senhor Frio. O encontro não termina bem: enquanto o detetive Marcus Driver tem ambas as mãos totalmente congeladas, seu parceiro Charles Fields é transformado em uma estátua de gelo e logo em seguida despedaçado.
O primeiro pensamento que o leitor tem, e também o mais óbvio, é chamar o Batman e deixar mais essa para sua conta, mas há um sentimento de vergonha nessa atitude. É bastante claro para os policiais que chamar o homem-morcego nada mais é do que um atestado de incapacidade por parte da força policial. Os “Melhores de Gotham”, como são conhecidos, muitas vezes não fazem mais do que papel de faxineiros, limpando a bagunça e o rastro de destruição, e essa situação de coadjuvantes da justiça incomoda bastante, a ponto de alguns deles manifestarem o desejo de conduzirem a investigação e não chamarem o vigilante num primeiro momento.
Uma pitada de realidade no meio da fantasia
Explorar a realidade de um departamento de polícia em um universo onde existam super-heróis é uma sacada genial, uma vez que permite aos escritores imprimirem uma carga dramática mais densa e oferecer ao leitor situações que poderiam perfeitamente acontecer no mundo real, ao mesmo tempo em que o conduz a torcer por uma intervenção do Batman, como quando a detetive Renee Montoya tem sua orientação sexual publicamente vazada, é acusada de assassinato e ainda por cima é sequestrada pelo Duas-Caras.
Com exceção do ex-comissário Gordon – que na ocasião da história já está aposentado de sua vida policial e leciona criminologia na Universidade de Gotham – não há exatamente uma relação de parceria entre a polícia e o Batman, sequer de confiança. Lidar com o gosto amargo de ver vilões como o Coringa assassinar pessoas com um rifle em plena época de Natal também mexe com os sentimentos dos dois turnos (dia e noite) da delegacia.
Sinta-se como um policial gothamita se sentiria
O arco brilha por conseguir colocar o leitor no meio de vidas comuns de policiais, que tem ao seu lado colegas com problemas reais, e que colocam sua vida em risco constantemente. E situações que não é incomum tomarmos conhecimento também estão presentes nessa série. A mídia que toma conhecimento de determinada investigação – através de vazamento de informações – e publica antes do autorizado. “Fontes escusas” de pistas também são uma realidade, em mais um exemplo onde a arte imita a vida.
A série de TV Gotham, que era transmitida originalmente no canal CW (atualmente está disponível na Netflix), também trazia o foco na vida dos policiais, tendo como protagonista o jovem detetive James Gordon em seus primeiros passos na cidade onde futuramente veríamos o homem-morcego. Neste ponto, ouso dizer que a série se perdeu ao mirar o céu e dedicar-se a apresentar os diversos super vilões, ao passo que Gotham Central concentrou-se no chão, trazendo histórias muito mais consistentes e pesadas – a ponto de ser desaconselhável para menores de 16 anos.
Embora esse arco tenha sido publicado entre os anos 2003 e 2006, o leitor que estiver interessado pode comprar os encadernados publicados pela Panini Books, facilmente encontrados na Amazon.
Revisão: Caroline Marques